Sô Zerô
Sô Zerô
Essa é uma obra de ficção.
Qualquer semelhança com fato real
é mera coincidência.
O som do surdo reverberava sua tristeza pelas ruas
do pelourinho. Os bêbados da cidade choravam a morte de seu Zerô. Baiano nato, baionense
convicto, funcionário público por profissão desde os dezenove anos de idade,
muito antes de se casar com Vera e se tornar alcoólatra por diversão. A cirrose
devorou sua juventude e o tolheu aos trinta e oito anos. Ninguém
acreditava nisso, que ele tinha apenas trinta e oito anos, sua aparência era de
quem tinha pelo menos dez anos mais, e ele tirava proveito disso como sendo de
mais responsabilidade. Mas isso não era importante naquele momento, nem o fato
de ter deixado três filhos para Vera cuidar e educar, mais dois filhos pelas
vielas da Bahia. Seus filhos com Vera são bonitos, digo, seu filho e suas
filhas, baianas fogosas e talentosas na música e na culinária, herdaram da avó
materna, porque a mãe não sabia fritar um acarajé no dendê sequer. Mas, tinha
outros dotes. Vera tinha talento pra tecer qualquer coisa com os restos da
tecelagem onde trabalhava desde os idos da adolescência, ela nem lembra mais
quando começou a trabalhar na fábrica de rede e tapetes do baiano importado da
Síria, Seu Mustafá era o legitimo imigrante de sucesso na Bahia e fazia
prosperar tudo em que colocava as mãos, sua família conseguiu uma pequena
fortuna em Salvador. Vera seguiu os passos do patrão e conseguiu criar sua
fabriqueta nos fundos da casa onde constituiu família com seu Zerô.
Como ele conseguiu esse apelido? Não, Eder não era
torcedor do time azul celeste mineiro, nem conhecia o Cruzeiro. Seu nome era
Eder Márcio da Costa e Silva, tinha a mania de tomar cerveja nos boteco fiado
e, no dia do pagamento, tomava as que queria, acertava a conta e perguntava:
– Zerô?
E o dono do estabelecimento respondia feliz, ou
não:
– Zerô!
Isso era em todos os lugares em que costumava
passar e deixar uma cerveja pendurada, depois passou a ser a pinga, a
Canelinha, a Jurubeba, ou qualquer outra coisa que tinha álcool, que o fazia
ficar “legal”. Queria ficar fora do normal pra esquecer a vida de camisolão em
casa e deixar a sua existência mais feliz, enquanto estava tonto ele era feliz.
Os becos e vielas da Bahia estavam frios. Caia uma
chuva fina e escorria pelas paredes de adobe da favela onde ele aprendeu a
gostar das companhias de golo. Deixava o centro da cidade às cinco horas no fim
do expediente da repartição e seguia a pé para o bairro do colega de truco para
mais uma partida e mais um teco na pinga do bar do sô João. Perdia noites de
sono naquela jogatina sem sentido e trabalhava muito pra tentar competir com
Vera na arte de pôr mantimento em casa. Seus três filhos estudavam em escolas
particulares e não estavam interessados em trabalhar por enquanto. Queriam
viver do samba dos clubes baianos onde viveram grandes nomes e foram
apresentados aos maiores sucessos das rádios brasileiras naquele tempo.
Seus filhos eram Eliomara, Edgar e Elyonara. Edgar
sabe lhe dar com todos os instrumentos de percussão, em suas mãos qualquer
caixa de fósforos era uma bateria completa, duas colheres e uma perna fazia o
som se confundir com as castanholas da mais exímia bailarina espanhola.
Pandeiro, agogô, afuxê e qualquer outro instrumento eram naturais em suas mãos
e se algo não produzisse o som que ele queria, era inventado em poucos minutos.
Eliomara, mulher de pernas grossas, pele bronzeada
nas praias de Salvador. Cintura fina sobre ancas avolumadas, seios fartos
apontando sempre duas horas, cabelos cacheados negros emoldurando uma boca
carnuda debaixo de um nariz pequenino plantado bem entre duas jabuticabas
negras no lugar dos olhos. Quando abre a boca pra cantar, sua voz soa como a
voz de uma sereia que encanta o mais experimentado dos marinheiros.
Elyonara fazia quatorze anos quando o pai veio a
falecer na boca da favela, tonto feito gambá, vomitando sangue e magro feito um
bicho do mato preso na gaiola. Elyonara é uma boneca que faz o piano chorar e o
violão suspirar as mais belas canções feitas de notas indeléveis e de acordes
perfeitamente dissonantes e o samba não era mais somente um batuque feito de
negros e pobres, era uma música fina, erudita, pronta para as câmaras e os
teatros dos grã-finos e gringos. Cedo, alguns compositores se apaixonaram pela
voz de fada aveludada e sedosa ao mesmo tempo. Sucessos gravados para eternizar
o sobrenome de sô Zerô.
Enquanto Eder Márcio fazia a corte para Vera, uma
música fazia a trilha sonora de um romance baiano duradouro e tolerante, era a mesma
que estava tocando baixinho do outro lado da favela, enquanto um surdo descia
zurrando o seu caixão morro abaixo até o seu enterro, funesto cortejo ao
som de um bumbo que chora o seu som oco e reverbera a despedida de Sô Zerô, o
baiano que deu ao mundo as mais belas vozes femininas para a música da Bahia
nos anos trinta e quarenta. Anos em que mulher não podia ser cantora porque era
pejorativo. Mulher tinha de ser educada para ser boa dona de casa, como Vera
era.
Música para enterrar Sô Zerô. Eder Márcio da Costa
e Silva. Agora sim, zerô, Eder. Zerado. Fecha a conta e passa a régua. Aumenta
o volume desse som triste das vielas, da favela, amigos de copo e de trabalho.
Zerado.
Por:
Paulo Siuves
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