O que é literatura?
“O que é literatura?”,
“Bom, literatura é tudo o que se pode ler!”.
“Huumm! Não é bem assim…”
explicação mais técnica que bula, eu
não quero conhecer. O pior das bulas são aquelas partes que diz, “…caso
ocorra, há risco de morte!” Há laboratórios que não acham isso muito
legal e mudam as palavras pra dizer a mesma coisa “…caso ocorra, há
risco de ortotanásia”. Aí o público leigo não se sente intimidado frente
ao uso do medicamento, e a gente ainda pensa – se está avisando, não
deve ser boa coisa. Embora o texto da bula provoque sensações e produzem
efeitos estéticos, ele não se preocupa em nos permitir sermos homens
melhores, na verdade essa “estética” procura vender a droga, procura não
afugentar os compradores… Isso não é literatura. É lá vamos nós para mais um debate. Há textos que simplesmente não
são literatura, por exemplo: bula de remédio; gastamos muito, muito
tempo lendo aquelas letrinhas miudinhas, feitas para caber a missa em
uma folha, frente e verso. Se tiver
Outra coisa que não é literatura… Manual de montagem. Não importa o
que você vai montar, não adianta usar o manual. Hoje em dia temos o
YouTube, joga lá “como montar…” e você vai encontrar um passo a passo do
que fazer. Certa vez meu cunhado trancou o carro com a chave na ignição
(na época em que era possível fazer isso), ligamos para o chaveiro e
ele cobrou taxa de visita, taxa da abertura da porta, taxa de fim de
semana e taxa de comprovante de pagamento das taxas anteriores. Estou
exagerando. A última não existiu. Mas, pensei no YouTube e se dava pra
evitar pagar tão caro para abrir uma porta. Consegui abrir o carro em
menos de cinco minutos. Bastou ver o tutorial que, obviamente não era
pra aprender a roubar carros, cinco minutos é muito tempo para isso.
Voltando ao assunto dos manuais, há tutoriais para tudo, evita-se lançar
em seguir um texto que mais confunde do que explica. Tente montar um
brinquedo para o seu filho ou para o seu neto seguindo o manual do
fabricante… A frustração é iminente. Manuais dos fabricantes não são
literatura, e ponto final.
Mapas. Sinceramente, mapa não é literatura, gente! Há coisas nos
mapas que são regras opostas do que se deve fazer. Bem vindos à
modernidade e à funcionalidade dos eletrônicos mapas virtuais. Procurava
uma construção indicada num mapa, porém a bendita havia sido implodida
meses antes! Sirvo de chacota para alguns colegas até hoje, seguir mapas
que usam construções humanas é pedir para ir pra lugar nenhum.
Imaginem, se coisas da natureza mudam, cursos de rios; Pequenas
elevações; áreas verdes… imagine prédios!? Mapas não são literatura.
Mesmo se tiver um poema dentro dele.
Existem muitas coisas que não são literatura. E existe muita coisa
sem letras que são literatura. Música clássica é literatura sonora;
quadros nas paredes é literatura dependurada; cidades barrocas, isso é
literatura habitável; uma criança amamentando, fazendo aquelas bochechas
rosadas inflarem com leite, olhinhos fechados, mãozinhas semi-abertas
no peito… é poesia clássica. E há muitos, inúmeros exemplos de
literatura que não são escritos. Aquela reunião de amigos num barzinho
no inicio da noite, no fim de ano, uma cena pra ler demoradamente,
alguns bebem de olhos fechados enquanto outros flertam, outros fazem um
batuque na mesa pra outro se lançar a cantoria, tudo é composição para
alguém mais atento fazer uma leitura e se deliciar absorvendo a energia
que emana do momento de confraternização.
Então podemos arrolar textos longos na categoria dos “não
literários”, livros que são um verdadeiro desperdício de tinta e papel,
livros escritos por autores que deveriam ter sido instruídos a não
tirarem aquelas aberrações da cabeça, trazendo à luz textos literários
horrorosos (há clássicos que vão renascer para sempre), assim como há
mimeses que não fazem parte de livro algum, estão por aí espalhadas
esperando algum leitor atento, sensível, que faça a análise disponível,
hora em cores, hora em sons, hora em paladares, hora pelo olfato, hora
nos momentos palpáveis da degustação artística androfágica, ou não
antropofágica, mas certamente literofático.
Por Paulo Siuves
P.S. – LITEROFÁTICO – neologismo que pode significar algo capaz de
garantir a função fática da linguagem, isto é, aquilo que é próprio da
literatura
Publicado no Jornal Clarin Brasil em 29/12/2019
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