O Vento e a Linha

Imagem gerada por inteligência artificial (OpenAI ChatGPT, 2025)

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Não era um vento qualquer — era daqueles que vinham assobiando pelas esquinas, levantando saias desavisadas, enchendo sacos plásticos de nada (iguais aos pastéis do centro da cidade) e subindo as ladeiras como se tivessem pressa de chegar a lugar nenhum. Era o tipo de vento que só podia dar numa coisa: em pipa.

E foi numa tarde dessas, de vento bom e céu limpo, que começou a epopeia de Caíque — oito anos, morador do segundo andar, especialista em pipas de seda e rabiola feita com sacola de supermercado. Ele tinha preparado a obra-prima da temporada: um papagaio com estampa do Homem-Aranha, nome de batismo Aracnóide Voador II — porque o primeiro se enroscou na fiação e foi promovido a mártir.

Subiu com um tubão de linha, o orgulho nos olhos, o chinelo quase perdendo o pé. No beiral do prédio, lançou o Aracnóide ao céu. E lá foi ele, desafiando a gravidade e as leis municipais, girando no azul como se voar fosse sua vocação original.

Mas eis que entra em cena o antagonista: Juninho, do bairro vizinho. Portador de uma linha chilena que o primo havia comprado no Shopping Oiapoque, enrolada numa lata de Nescau e armada como se fosse fio de espada samurai. Tinha um olhar treinado, cortava pipas como quem corta laços afetivos: rápido e sem culpa.

A guerra foi breve. O Aracnóide Voador II girou uma, duas, três vezes… até que: ZAPT! Um silêncio no ar. Um pedaço de rabiola desceu em espiral. A cabeça da pipa caiu em queda livre — direto no para-brisa de um Corsa vermelho. E o Corsa… bem, o Corsa seguiu reto, como se nada tivesse acontecido. Exceto pelo motorista, que agora gritava coisas impróprias com um pedaço do Homem-Aranha colado na testa.

A crônica poderia acabar aqui, como uma boa piada de esquina. Mas o problema é que o corte da linha também atingiu o ombro do Evandro Motoboy, que passava apressado, levando uma entrega e um sonho de fazer um consórcio para comprar uma moto nova. O corte foi fino e fundo. O sangue escorreu como naqueles filmes que Caíque não podia assistir — mas assistia mesmo assim.

E foi ali, entre o assombro e o choro, que ele entendeu: a linha que sobe também pode descer. E cortar.

Desde então, o Aracnóide III foi feito com linha pura. E Juninho — que teve que dar explicações para a mãe, para a polícia e para o dono do Corsa — virou o terror dos papagaios… até virar evangélico e mudar de bairro.

O vento ainda passa por ali. Mas aprendeu a soprar com cuidado. Porque até o vento tem medo de cerol.

Por Paulo Siuves

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