A Conversa que Mudou Tudo
Essa é uma obra de ficção.
Qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência.
Muitas vezes, estar em um desses salões sobre rodas do transporte coletivo urbano é o mesmo que estar em uma roda-viva de conversa aleatória: é instintivo e, ao mesmo tempo, uma terapia. Porém, cada ônibus tem seus personagens. Há os que disputam a janela como quem disputa herança, há os que já acordam resignados a viajar espremidos no corredor, pendurados na alça de mão do teto, e há os que se contentam com qualquer canto, desde que cheguem vivos ao destino.
Normalmente, como vou de um final ao outro — PC1 a PC2 — já sei de cor o percurso. Explico: PC1 é onde começa a primeira metade da viagem, a tal caçambada, e termina em PC2. Dá-se uns minutos, e começa a segunda metade, do PC2 de volta ao PC1. É nesse intervalo que se mede quantas pessoas cabem na roleta. Numa viagem lotada, garante o cobrador — ou agente de bordo, como preferem chamar — cabem mais de setecentas almas em uma única caçambada. Quem me explica isso é sempre o cobrador, esse sujeito alegre e cordial, o único com quem a gente pode conversar sem medo de multa moral, já que, com o motorista, há sempre a placa: “Evite conversar com o motorista”. Coitado dele, condenado ao isolamento verbal.
Pois bem, numa dessas viagens abarrotadas, éramos três pessoas conversando — duas sentadas e eu em pé, ao lado delas. Digo “três” por delicadeza, porque as duas nem sabiam que eu participava da conversa. Eu evitava olhar diretamente, mas estava inteirinho ali, prestando atenção em tudo — e era impossível não prestar, tanto pelo volume das vozes quanto pelo teor quase filosófico, quase religioso, do bate-papo.
A mulher, sentada no corredor, falava para o senhor da janela como quem confessa segredos de uma vida inteira:
— Eu tenho pavor de acordar um dia e descobrir que não vivi em plenitude.
Ele pigarreou, pensativo. Ela continuou:
— Sabe aquelas coisas que a gente promete para si mesmo e vai adiando? Viajar sozinha, aprender um instrumento, pedir desculpa a quem precisa ouvir? Um dia, a gente percebe que adiou tanto que nem sabe mais por onde começar.
O senhor, de bigode ralo e mãos calejadas, respondeu devagar:
— Minha filha… tem coisa que a gente deixa pra depois e o depois não vem. Mas tem coisa que ainda dá tempo.
Ela sorriu de canto, apertando a bolsa no colo:
— Talvez seja tarde demais para algumas coisas, mas não para outras.
Nesse momento, meu ponto estava chegando. Acionei o sinal, torcendo para que ela desenvolvesse a ideia, que revelasse o que faria “enquanto ainda não era tarde”. Mas o ônibus já desacelerava, a porta se abriu, e eu lutei contra a vontade de ficar. Queria continuar ali, espectador clandestino daquela roda-viva que se formara entre dois desconhecidos.
Desci, ainda ouvindo o eco da frase dela misturado ao barulho do motor. Segui meu caminho com a sensação estranha de que aquela conversa não havia terminado — nem para eles, nem para mim.
Diacho de conversas longas que não se emendam, e os pontos chegam antes da gente estar pronto para descer.
Paulo Siuves
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