Dança na Última Caçambada
Qualquer semelhança com fato real é mera coincidência.
Carlos Drummond de Andrade, com aquele seu olhar atento para o banal que vira poesia, já relatou a infinidade de pernas dentro de um bonde — e a variedade delas, refletindo sobre quantas histórias cabem num espaço tão pequeno. “Para que tanta perna, meu Deus?” é o verso dele, lá no Poema de Sete Faces, que sempre me vem à cabeça quando entro num coletivo urbano. A gente raramente se dá conta do drama silencioso da pessoa sentada ao nosso lado.
Ela me contou que, numa noite de desespero psicológico, voltavam para a garagem depois das várias “caçambadas”. A féria já estava contada e registrada, tudo dentro dos conformes. Ela ligou o radinho de pilha, acendeu um cigarro e, enquanto o motorista guiava a máquina incrível que carrega vidas pelo asfalto, começou a dançar sozinha no salão vazio, iluminado apenas pela lua lá fora.
Num dado momento, pediu ao motorista:
– Abre a porta pra ventilar, Moto. Tá um forno aqui dentro.
Mas, de repente, percebeu algo errado. Um detalhe no gesto dela, talvez um olhar perdido. Num impulso rápido, fechou a porta — e o barulho do ar comprimido cortou o salão. Foi no exato momento em que ela se lançou. Ficou presa entre as portas.
O motorista encostou o ônibus ali mesmo, sem se importar com acostamento. Largou o volante, correu até ela, abraçou-a forte. Choraram juntos, longamente. Conversaram, e ele arrancou dela uma promessa: daria mais uma chance à vida.
Graças ao tirocínio — e ao coração — daquele motorista, ela mais tarde se casou, teve filhos… e eu acabei namorando uma dessas filhas. Foi ela quem me contou essa história de superação, ali mesmo, dentro de um ônibus. E eu, lembrando de Drummond e das pernas que vão e vêm, pensei que cada caçambada carrega mundos inteiros — e, às vezes, salva um.
Paulo Siuves
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