O Banquinho dos Trouxas


Essa é uma obra de ficção.
Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.


Quando eu era criança, os ônibus que circulavam pela Grande BH tinham uma tarifação diferenciada por fichas. Eram grandes, de plástico duro, e vinham em três cores — acho que amarela, azul e vermelha. Não lembro bem como funcionava, mas era por distância: de Beagá a Contagem era uma cor, até Betim era outra; para o outro lado, de Belo Horizonte a Santa Luzia, uma cor; de BH a Sabará, outra.

Mudando de assunto… Os ônibus tinham um assento solitário logo atrás da porta da frente. Minha mãe chamava aquele assento de “o banquinho dos trouxas”. Segundo ela, em caso de batida frontal, o motorista jogaria o ônibus para o lado do banquinho — e o trouxa é que sofreria as consequências.

Pois bem, havia um motorista que chegava cedo ao ponto final do meu bairro. Ele tinha a estranha mania de conversar sozinho. Um solilóquio tão convincente que me dava arrepios: gesticulava, olhava para um lado específico, como se alguém invisível estivesse mesmo ali, respondendo. Quando chegava a hora de partir, fazia tudo depressa — ligava o ônibus, conferia o painel, abria e fechava as portas, desengrenava o freio de mão, encaixava a primeira, manobrava para tirar a máquina de conduzir trabalhadores da inércia. Tudo com olhos arregalados, ansioso para retomar a conversa com o seu “interlocutor”.

Eu, por precaução, nunca me sentava nos primeiros bancos.

Um dia, num céu menos anuviado, ele resolveu conversar comigo. Contou histórias de passageiros folgados: aqueles que pedem para parar fora do ponto e reclamam quando não dá; os que exigem informações que ele não tinha; todo tipo de situação. Mas a que me deixou arrepiado foi sobre a velha do “banquinho dos trouxas”.

Ela virou rotina: ia sempre na última viagem do bairro até o final da Pedro II. Mal-educada, grossa mesmo, nunca respondia a um “boa noite”, nunca agradecia. Dava sinal, descia e ficava parada ali. O motorista nunca viu pra onde ela ia. Ela simplesmente… não se mexia.

Uma noite, tomado por uma mistura de irritação e curiosidade, ele perguntou:

– A senhora vai bem? Quer ajuda pra atravessar?

Nada. Nenhum gesto, nenhuma palavra. O motor roncava baixo, o vento noturno entrava pela porta aberta. Ele engatou a primeira, andou alguns metros, olhou pelo retrovisor — ela ainda estava lá, imóvel, sob o poste de luz amarela. Se benzeu e seguiu viagem.

Na noite seguinte, ele jurou que a mesma velha subiu de novo, sentou-se no banquinho dos trouxas e desceu no mesmo ponto. Novamente ficou imóvel. Estática.

Até hoje, sempre que passo por aquela avenida, o poste ainda está lá. O banco também. E, às vezes, juro que vejo um vulto parado, esperando um ônibus que talvez nem circule mais. Mas pode ser só impressão minha… ou a velha é pontual demais para perder a última caçambada.



Paulo Siuves

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